Recordação

             Meu nome é Carla Cavalheiro, mas todo mundo me chama de Cacau. Ontem sentada no "puff" parei para pensar na vida, nos tempos passados, na infância, nos amigos. Lembrei da Sabrine. Na verdade eu nunca esqueci. Nos conhecemos nos tempos da escola, foi meio que por acaso ou espontâneo. Eu jogava no time de basquete da escola, muito mal por sinal e um dia em um dos meus golpes animalescos, derrubei uma garota. Ela sofreu uma fratura exposta, foi para o hospital, quase morri de vergonha, visitava ela todos os dias, arquei com as despesas e assim, ficamos amigas.  Nossos gostos eram praticamente os mesmos, forma física totalmente contraria e personalidades que se encaixavam quase que perfeitamente. Quando uma fazia birra a outra sabia bem contornar a situação. Discordávamos em algumas coisas, mas nada que resultasse em alguma briga séria. 
             Fazíamos parte de uma quarteto, Eu, Sabrine, Lara e Mariah. Eu particularmente me identificava muito com Sabrine, aprendi a confiar em alguém, talvez, pela primeira vez. Aqueles segredinhos toscos de adolescente eu dividia com ela. Na época eu usava aparelho e óculos, as outras sempre zuavam com a minha cara, me chamavam de nerd e etc. Nada disso passava de ciúmes, não sei de que.. Afinal, como disse era tudo tão tosco... Eu enxergava o que se passava, mas não tentava e nem podia tentar me defender, porque a história poderia se espalhar e eu ficaria como a "doida". Deixei assim.
              Lembro, como se fosse hoje, do dia em que fomos comemorar o meu aniversário no boliche, as palavras de Sabrine foram como uma passagem a outro plano, aquele abraço foi um agrado a minha alma e eu senti que já não precisava de mais nada. Eu confiava nela, eu gostava, gosto demais. Mas, quando voltei ao mundo, me deparei com um olhar satânico de Lara, que vinha diretamente para a nossa direção, sem desvios. Ali me toquei que era preciso realmente tomar muito cuidado. No outro dia, conversei com Sabrine, ela disse que eram coisas da minha cabeça... - como eu suspeitava que aconteceria.
                Um tempo depois, acho que um mês depois, comecei a sentir que a minha amiga já não era mais a mesma, o oi mal saía da boca, o rosto já não tinha aquela forma de sempre, o seu comportamento foi me deixando em dúvida sobre os seus sentimentos, as coisas começavam a desmoronar. Lara passava por mim com aquele olhar de quem venceu o jogo, Mariah se deixava influenciar. As coisas foram se perdendo do meu controle, eu já não sabia o que dizer. Tentei uma, duas, dez, talvez mil conversas com a Sassa, mas nada fazia mudar aquela arrogância, aquele ar cínico e dissimulado. Sofri, foram meses e meses. Parecia que o tempo não passava, as coisas não mudavam... Então, resolvi erguer a cabeça e continuar a vida, pois não se pode lamentar uma vida inteira por algo que talvez não vale a pena. 
                    Já estávamos em uma época bem próxima da formatura, provas finais e a excursão para Punta del Este se aproximava. Passaram-se os meses e fomos. A viagem foi ótima, marquei de dividir o quarto com a Fabi e a Loala. Elas eram muito divertidas ! 
                    Nevava muito, fomos esquiar. Porém, antes de sair do hotel, vi Sassa chorando e perguntei o que era, ela me tratou com estupidez. Aquilo abriu a ferida que havia em mim, mas não me fez desistir do passeio. A noite chegou e eu me virei de todas as maneiras na cama, nada de sono! Nada me tirava da cabeça aquele desprezo da Sabrine em relação a mim. 
                    No dia seguinte saí para dar uma volta, percebi que havia visto todos, menos Sassa. Liguei pro hotel e ninguém tinha notícias, Lara havia arrumado um novo namorado e Mariah pouco se preocupou. Saí a procurar, perguntei, perguntei... O guarda da pista de patinação me informou que ela havia passado por lá pela manhã, mas que fazia um tempo que havia ido embora. Andei, andei... E lembrei que ela gostava de observar o nascer do sol. Fui esquiando procurá-la, até que de longe vi aquele corpo no chão. Era ela casaco roxo, respiração ofegante, caída sobre a neve. Ela havia desmaiado, estava com febre alta e com as extremidades roxas. Eu não podia chorar, devia ser forte, mas não consegui. Tirei todos os meus casacos, pus nela, tentei fazer respiração boca a boca, tentei reanimá-la. Mas, a cada gesto meu, ela ia dando menos sinal de vida. Tentei tirá-la dali, tentei ligar para alguém mas meu celular estava sem bateria.. Chorei tudo o que pude, lembrei de todas as coisas lindas que passamos, dos tempos que jamais irão voltar. 
                  Eu não consegui salvá-la, não consegui dizer a ela que eu a amava muito. Apenas pedi desculpas por não ter conseguido salvar a pessoa, que mesmo depois de ter cumprido a sua missão, me ensinou a perdoar e que a morte é só uma fase, infelizmente permanente, mas que não define a extinção da vida. Nada se perdeu, apenas se transformou em lembranças.
        

Leoa

        Ela me olha com olhos de leoa. Como quem fita a presa fixamente e sente o estômago roncar e se contorcer a espera de comida. Parece que terminar comigo seria pouco ou talvez apenas um terço da sua vitória. Em sonhos, eu desço quadrada na garganta, chego no estômago e sou muito mal recebida, ela preferia carregar um elefante nas costas a ter de me aguentar, me ver sorrir, me ver renascer e reconstruir o estremecido. Justamente porque não caí é que ela custaria a me digerir e a se dar por satisfeita.
            Eu não devolvo na mesma moeda, finjo que não vejo, respiro, sorrio e emudeço. Penso, repenso e reflito sobre a pena que sinto dessas atitudes vazias e desertas, no corpo de quem tem talento suficiente para superar as próprias expectativas, que não são poucas. 
           Mas que ironia, pois num mundo em que se tem tanto a fazer, ainda há quem gasta tempo tomando conta do alheio, com armas de fogo a postos para destruir os felizes. Porém, se existe uma coisa chamada justiça, posso dizer que em breve tudo pode vir a mudar, outra vez, assim vamos indo e enfrentado essa louca viagem que é a vida.


  "Aos que me atiram pedra, obrigado. Pois, é com elas que construirei o castelo." (citação de autor desconhecido)